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Foto do escritorJoão Luz

Da prevenção à vacinação, negros não são prioridades para os governos



No Brasil, a população negra é a mais afetada pela pandemia de covid-19. Ainda assim, negros estão sendo duas vezes menos vacinados do que brancos.

 

Mônica Calazans foi a primeira brasileira a receber a vacina contra a covid-19 no país. Mulher, negra, com 54 anos, a enfermeira do Instituto de Infectologia Emílio Ribas tornou-se símbolo da tão esperada imunização nacional. Meses depois, ela não poderia imaginar que a população negra, da qual faz parte, estaria sendo duas vezes menos vacinada em relação à população branca. 


Esse é o resultado de uma análise divulgada em março de 2021 pela Agência Pública, a partir dos dados dos primeiros 8,5 milhões de brasileiros que receberam a dose inicial de uma das vacinas aprovadas pela Anvisa e aplicadas pelo Governo Federal (atualmente, são mais de 30 milhões de pessoas).


Segundo os resultados do estudo, havia até então 3,2 milhões de indivíduos autodeclarados brancos já vacinados, contra apenas 1,7 milhão de indivíduos autodeclarados pretos ou pardos. A desigualdade permanecia em todas as faixas etárias, bem como ao comparar a quantidade de negros vacinados em relação à própria população negra (1,75%) e a de brancos em relação à população branca (3,52%). Para Emanuelle Goés, pesquisadora do Centro de Integração de Dados e Conhecimentos para Saúde (Cidacs/Fiocruz), existem algumas razões que podem explicar esses dados. A primeira é que a priorização de pessoas mais idosas já exclui, em parte, a população negra. Isso porque os negros têm menor longevidade em comparação aos brancos, devido à morte de seus adolecentes, aos hábitos de vida e ao acesso precário aos centros de saúde.

Entre os primeiros a serem vacinados, estavam, além dos idosos, integrantes de comunidades tradicionais e profissionais de saúde. No entanto, trabalhadores de serviços essenciais, como limpeza e segurança das ruas e de hospitais – as chamadas ”categorias de apoio” – ou serviços informais com autorização para trabalhar, também continuaram exercendo suas funções. 


“Esses grupos são em maioria negros. E eles não foram contemplados em primeira instância na prioridade de vacinação”, explica a pesquisadora. Nesse sentido, estão também os indivíduos em situação de rua ou privados de liberdade, representados em cerca de 70% pela população negra e, no caso dos presidiários, incorporados apenas na quarta fase da imunização nacional.

“Existe uma diferença entre vacinar um idoso que mora em bairro de classe média alta, vive sozinho e tem a possibilidade de se isolar e um idoso que mora na periferia, com várias pessoas na mesma casa e precisa sair todos os dias para trabalhar”, pontua Emanuelle. “A pandemia não é lida do ponto de vista das desigualdades. Para se implementar uma estratégia, devemos pensar primeiro em quem está em maior vulnerabilidade. Precisamos olhar para quem está às margens, para as comunidades tradicionais, para aqueles que estão mais distantes dos serviços de saúde. Os grupos prioritários realmente correspondem a essas populações?”, questiona. 


A política de “deixar morrer”


A análise da vacinação feita pela Agência Pública é exceção em um cenário de dados raciais precários. De acordo com Marcia Pereira Alves dos Santos, membro do Grupo de Trabalho (GT) de Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), as informações sobre a perspectiva étnico-racial são escassas desde o início da pandemia. Até abril de 2020, a relação não constava nos próprios boletins epidemiológicos divulgados pelo Ministério da Saúde, ignorando a portaria n° 344, de 2017, que exige a variável cor em todos os documentos produzidos pelo órgão.

“Hoje, esse dado é considerado, mas ainda de maneira deficiente. Para se ter uma ideia, o número de campos sem informação supera a soma dos campos informados. Então, a qual realidade esses boletins epidemiológicos se referem? Sabendo que a população brasileira é em sua maioria autodeclarada preta ou parda, essa é uma estratégia de racismo institucional, de deixar morrer um determinado grupo de pessoas”, opina a pesquisadora.


Como consequência direta dessa falta de dados, há a ausência de políticas públicas direcionadas não só para a vacinação, mas para prevenção, controle e mitigação do impacto da covid-19 na população negra. 

Segundo o informativo de março de Desigualdades Raciais e Covid-19 da Afro-CEBRAP (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em 2020, houve excesso de mortalidade – isto é, mortes além do esperado em comparação com anos anteriores –  de 153 mil (27,8%) entre pretos e pardos e 117 mil (17,6%) entre brancos. Comparativamente, os mais afetados foram jovens negros de até 29 anos, idosos negros de mais de 80 anos e mulheres negras.

“A pandemia chegou ao Brasil com um lapso de tempo, mas nós desconsideramos toda a robustez de informações que já tínhamos para importar experiências de outros países. Considerando o cenário brasileiro, o que a covid-19 nos apresenta hoje é um exponencial da situação de desigualdade historicamente vivenciada”, aponta Marcia Pereira.


A assimetria citada pela pesquisadora pode ser percebida a partir das várias dificuldades enfrentadas por grande parte da população negra. A primeira delas é a inviabilidade de se manter em casa, respeitando o isolamento e o distanciamento social, pela necessidade de trabalhar para sobreviver. “Os negros têm os piores vínculos formais de trabalho, quando os têm. Essa informalidade exige que saiam às ruas para colocar comida na mesa”, destaca.


No caminho para o trabalho, eles se expõem à covid-19 diariamente, em especial dentro dos transportes públicos lotados e mal adaptados para o período de pandemia. Nem ao chegar em casa é possível se proteger completamente da doença, tendo em vista que, em muitos locais periféricos de maioria negra, não há saneamento básico adequado, o que prejudica a higiene constante das mãos e o acesso a determinados produtos de limpeza.

“E isso impacta também no modo de viver. Sem as necessidades básicas atendidas, os negros são os mais atingidos por doenças crônicas, como diabetes, hipertensão, sobrepeso e condições cardiovasculares – todas fatores de risco para quadros graves da covid-19”, destaca Marcia Pereira. A vacinação para comorbidades, no entanto, ficou restrita à terceira fase.


Há ainda a barreira do acesso aos serviços de saúde. A especialista explica que a população negra chega aos centros de atendimento na mesma proporção da população branca, mas em uma condição um pouco mais grave e com maior dificuldade para ser transferida às unidades de tratamento intensivo. Segundo a Pública, a relação se mantém durante a pandemia: enquanto negros levam em média 11 dias para serem hospitalizados, brancos demoram 9,4 dias.


Fonte: Drauzio Varella

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